A essa altura, nem mesmo a ultradireita mais tacanha se atreve a negar que o uso das câmeras corporais, as bodycams, contribuem efetivamente para a redução da violência policial.
A partir do exemplo da drástica redução de mortes causadas pelas polícias Civil e Militar em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Santa Catarina — onde o uso da tecnologia é amplo —, a Polícia Rodoviária Federal, a Polícia Federal e a Força Nacional estão adotando também o uso de câmeras corporais em suas fardas.
O uso desmedido da força, contudo, não é um problemas restrito às polícias. Como demonstram as dezenas de casos que vêm a público, também envolve os serviços de segurança privada. Atualmente, o Senado analisa um projeto para obrigar o uso de câmera corporal por vigilantes, apresentado pelo ex-ministro Flávio Dino em sua breve passagem pelo Senado antes da posse no STF.
Um exemplo concreto dessa iniciativa já foi implementado pela maior varejista no Brasil — e cenário de episódios emblemáticos de violência cometida por vigilantes nos últimos anos: o Grupo Carrefour. Há um ano, os seguranças passou a exigir que seus seguranças usassem câmeras acopladas ao corpo.
Dono de quase 1.200 lojas espalhadas pelo território nacional — incluindo as bandeiras Atacadão, Carrefour, Sam’s Club, Nacional, Super BomPreço e TodoDia —, o Carrefour equipou mais de 800 de suas empresas com câmeras corporais, o que representa cerca de 66% do total.
“O caso do João Alberto nos causa sempre muita indignação”, afirma o Diretor de Transformação do Grupo Carrefour Brasil, Marcelo Tardin, a CartaCapital. “Não deveria jamais ter acontecido. E é obrigação nossa fazer o máximo para que nunca volte a acontecer. Todas essas ações estão inseridas dentro desse contexto.”
A política de prevenção de segurança, que inicialmente era externa, começou a ser adotada internamente pela empresa um ano após o ocorrido. Os seis seguranças envolvidos no caso foram demitidos, três estão presos — um deles em regime domiciliar. O caso, no entanto, ainda não foi julgado.
“Alteramos todos os nossos contratos com terceiros para incluir cláusulas de anti-violência, anti-racismo e anti-discriminação”, informou Tardin. “Além disso, estabelecemos um filtro em nosso departamento de compliance para assegurar que novos parceiros não tenham registros de incidências antes de serem contratados.”
A menção aos seguranças terceirizados surge porque, em incidentes como o caso de Freitas e uma agressão a um casal na Bahia, no ano passado, alguns dos agressores eram vigilantes externos. Atualmente, esses profissionais estão incluídos entre os 6 mil seguranças que utilizam câmeras corporais em suas fardas, servindo aos 15 milhões de clientes que frequentam semanalmente os mercados e hipermercados do grupo.
O uso das câmeras na prática
Os seguranças iniciam o turno vestindo uma cinta que acopla a câmera corporal, que fica armazenada em uma estação de recarga. Conforme explicado pelo porta-voz do grupo, a captação de imagem e som é ativada automaticamente assim que o trabalhador se afasta do terminal, e os dados capturados não podem ser alterados — um diferencial notável em comparação com alguns registros na segurança pública.
“A gente se preocupou muito com essa questão de manipulação de dados”, pontua Tardin. “A câmera não permite que o colaborador apague ou acesse os dados da câmera, é um sistema fechado. Ela começa a gravar num momento que a câmera é retirada da estação”.
Durante momentos privados, como almoços e pausas, os seguranças não utilizam o dispositivo.
Todas as gravações são armazenadas em um sistema interno nacional, visível apenas para os diretores de loja, em nível local, e para a equipe de prevenção da empresa. “Somente a equipe de tecnologia consegue acessar e apagar imagens do sistema”, frisa o porta-voz.
As gravações são consultadas pela equipe de segurança e gestão de riscos apenas em casos de discussões entre seguranças e clientes, e também são utilizadas para o treinamento dos agentes, promovendo boas práticas e abordando condutas inadequadas.
Em situações de má-conduta confirmada, as medidas disciplinares podem variar desde uma advertência verbal até uma advertência escrita, e, em casos graves ou reincidentes, pode haver demissão.
Atualmente, contudo, o Carrefour não dá detalhes sobre como um cliente pode solicitar acesso às gravações, nem sobre o período de tempo em que essas imagens são mantidas no sistema da empresa.
Gargalos e próximos passos para maior efetividade
A iniciativa, inédita na segurança privada no país, é vista com bons olhos por especialistas consultados por CartaCapital, embora precise de ajustes para que seja replicada em nível nacional, especialmente no que diz respeito à transparência no armazenamento e uso dos dados.
A medida é o ponto-chave de diferença sobre a implementação da tecnologia nas esferas públicas e privadas. Na segurança pública a transparência é obrigatória, enquanto no setor privado, pelo ineditismo do uso ,ainda não existe uma regulamentação específica que aborde essa questão.
“As questões de política de proteção de dados precisam estar claras: se essas imagens vão ser processadas, por quanto tempo elas vão ficar armazenadas, todas as imagens vão receber algum tipo de tratamento?”, questiona a pesquisadora, Thallita Lima, que coordena o Panóptico, projeto sobre reconhecimento facial do Centro de Estudo de Segurança e Cidadania (CESeC).
“Imagina que os seguranças estão produzindo essas imagens sobre outras pessoas e até sobre o próprio fazer deles, eles também estão sendo filmados”, complementa.
A pesquisadora enfatiza que a política de segurança de dados é importante até mesmo para eventuais casos onde o sistema seja hackeado e para além disso, visando garantir os direitos resguardados pela Lei Geral da Proteção de Dados.
Neste caso, a norma federal respalda o tratamento de dados nos casos das imagens captadas apenas pelas polícias.
“Quando ela é utilizada para segurança privada, ela não se enquadra no artigo 4º da LGPD, portanto, a política de processamento das imagens precisa ter uma política de proteção de dados”, ressalta Lima.
A preocupação também é levantada por Daniel Evler, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da Universidade de São Paulo (USP).
“Tem uma questão do que acontece com essas imagens: quem regula, quem acessa as imagens?”, questiona Evler. “Se eles fazem algum processamento sobre essas imagens, por exemplo, se a câmera flagrar uma pessoa furtando, eles podem fazer um reconhecimento facial para ver se ele já furtou em outras lojas ou para tentar mandar isso pra polícia?”
Além do possível reconhecimento facial, ainda não confirmado, o pesquisador cita também, que em possíveis ações judiciais, que caso o tempo de armazenamento da gravação no sistema seja de curto prazo, os registros não poderiam ser usados em alguma investigação.
Antirracismo
Partido do pressuposto que “câmera sozinha não faz milagre”, parafraseando o ditado popular, o Carrefour incluiu em sua nova política de segurança treinamentos focados em antirracismo, comunicação não-violenta e gestão de crise;
Esse pilar tem como base dois cursos virtuais: “Eu Pratico Respeito” e o “Letramento Racial”, realizados durante três dias com os novos contratados e reciclado anualmente. As formações contaram com apoio de criação da Faculdade Zumbi dos Palmares, em São Paulo.
Questionado se uma política presencial não teria resultados mais efetivos, Tardin, diretor de Transformação do Carrefour, explicou que para o grupo, o “treinamento on-line permite a gente fazer provas e a gente fazer renovações, podendo saber por loja, quantos por cento dos colaboradores conseguiram preencher o treinamento, quais estão devendo ou atrasados”.
Questionado sobre se uma abordagem de treinamento presencial poderia trazer resultados mais efetivos, Marcelo Tardin reafirmou as vantagens do modelo online. “O treinamento online nos permite realizar avaliações e atualizações frequentes, além de monitorar por loja quantos colaboradores completaram o treinamento e identificar aqueles que estão devendo ou com atrasos”, justifica.
Lima enfatiza que procedimentos preliminares à implementação dos equipamentos, como os mencionados, são fundamentais para reduzir a violência nas abordagens
“A adoção da câmera traz um elemento político de que: ‘olha, os meus funcionários estão usando a câmera, porque eu quero garantir que haja respeito aos protocolos, porque eu quero garantir que haja transparência’”, afirma, “mas ela tem que vir junto com um treinamento, um procedimento operacional padrão”.
Na pesquisa interna realizada pelo grupo, dos 2,7 mil seguranças que usam as bodycams, 83% deles acreditam que o equipamento contribuiu para uma melhor interação com o cliente e a redução de incidentes que fujam dos nossos protocolos.
“A câmera tem um efeito rescisório no agente de segurança e também na pessoa que está sendo abordada, então, evita a escalada das tensões e por isso que o uso da força acaba não sendo necessário”, explica o pesquisador Evler. Logo, contribuindo não apenas para a proteção local, mas também para os vigilantes e clientes.
O porta-voz do Carrefour destaca que o grupo pretende retomar a pesquisa sobre os incidentes na loja, ao menos semestralmente, e expandir a importância do uso dos equipamentos entre os seus funcionários. “A gente não consegue consertar todos os problemas do Brasil. Mas, se dermos o exemplo como maior varejista e apontarmos caminhos, podemos influenciar positivamente esse movimento”.