O impacto fiscal das medidas necessárias para a reconstrução das cidades afetadas pelas enchentes no Rio Grande do Sul está no radar de economistas e agentes financeiros. Entre os principais pontos de preocupação estão a forma da destinação de recursos públicos e, em especial, os mecanismos de controle e fiscalização para evitar desvios, desperdícios e corrupção.
A alternativa de concessão de créditos extraordinários via medida provisória (MP) se sobrepôs à edição de proposta de emenda à Constituição (PEC), sugerida por lideranças Congresso Nacional e criticada por economistas. O instrumento da PEC, utilizado durante a pandemia de Covid-19, imporia maior risco fiscal, já que as regras poderiam ser flexibilizadas, sem fiscalização dos recursos.
Além disso, com o crédito extraordinário, mecanismo vigente específico para casos excepcionais, a equipe econômica espera que as despesas executadas possam ser retiradas do limite de gastos do arcabouço fiscal sem necessidade de bloqueio de outras verbas. O Executivo já anunciou que não faltará dinheiro para atender ao Rio Grande do Sul, mas a Fazenda estuda formas de reduzir os efeitos nas contas públicas.
Discussões no Congresso acirram preocupações
Embora seja a melhor alternativa, há muitas dúvidas e receios em relação à concessão dos créditos extraordinários. Uma análise breve sobre o que vem sendo discutido no Congresso Nacional dá a medida da preocupação do mercado.
A Comissão Mista de Orçamento (CMO) aprovou, na quarta-feira (8), mudanças na lei de diretrizes orçamentárias (LDO) para facilitar o envio de recursos e ajuda ao Rio Grande do Sul. Entre os projetos de lei aprovados, está o que permite ao governo federal priorizar a execução das emendas individuais na modalidade de transferências especiais, conhecidas como “emendas Pix”.
A medida vale para municípios em situação de calamidade reconhecida pelo governo federal ou de emergência em saúde pública reconhecida pelo Ministério da Saúde. Outro PL autoriza o governo federal a abrir crédito extraordinário no orçamento para destinar o valor das emendas individuais para as ações de proteção e defesa civil de estados em calamidade.
O receio dos agentes econômicos é que estes e outros projetos possam ser estendidos a outros estados e municípios que possam se enquadrar nos critérios determinados. O país tem atualmente 1.640 municípios considerados formalmente em estado de calamidade ou situação de emergência, a maioria por crises de saúde pública, segundo dados do Ministério da Integração Regional. Também há questionamentos sobre a destinação de benefícios fiscais e creditícios.
“Tenho muitas dúvidas sobre o tamanho desse crédito extraordinário e a maneira como vão ser distribuídos esses recursos. São benesses, subsídios e auxílios de várias modalidades que precisam ser focalizados. Não pode ter ‘carona’ para outros estados, empresas ou segmentos, como na liberação de recursos para produtores agrícolas afetados”, diz Mauro Rochlin, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV) no Rio de Janeiro. “Esse detalhamento é que é fundamental para a gente saber o tamanho da conta que vamos pagar.”
Samuel Pessôa, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre/FGV), também destaca o auxílio aos produtores rurais. “Você tem um socorro para lá de legítimo aos produtores do Sul, então você vê uma mobilização ali da bancada ruralista para perdão anistia a dívidas ou refinanciamento de dívidas de todo o setor”, disse à CNN.
“Isso tem impacto direto no erário e para o custo do serviço da dívida pública. A gente deveria estar falando especificamente de algum alívio para os produtores do Rio Grande do Sul. Não pode ir além”, defende Pessôa.
A dívida pública também é um ponto central para Gabriel Barros, economista-chefe da Ryo Asset. Para ele, a forma como o governo vai lidar com o aspecto fiscal pode desancorar as expectativas do mercado.
Segundo ele, a exclusão dos valores das medidas emergenciais do teto de gastos do Orçamento, defendida pela equipe econômica, não deve ser associada à mudança da meta do déficit primário.
“Não há necessidade, convenhamos, de você tirar essa ajuda da meta”, afirma. “Mesmo excluindo o valor do limite de gastos, no final do dia o déficit vai aumentar e é isso que importa para a trajetória da dívida pública.”
Segundo o economista, se o valor for excluído da meta, serão prejudicadas “a transparência e a accountability [transparência na prestação de contas] que o Tesouro Nacional precisa ter” para explicitar as despesas com a catástrofe no Sul.
Agência Moody’s eleva previsão de rombo das contas públicas
Nesta segunda-feira (13), a agência de classificação de risco Moody’s elevou a previsão de déficit primário do Brasil, de 0,5% do PIB para 0,75% do PIB, com viés de alta. O déficit nominal – que considera o pagamento dos juros da dívida pública – também deve ser maior, de 6,7% do PIB, acima dos 6,2% do PIB previstos anteriormente.
“O desastre no Rio Grande do Sul reforça a necessidade de consolidação fiscal no país. As despesas de emergência vão testar a capacidade do governo de atender às necessidades de despesas adicionais para ajudar o estado”, disse Samar Maziad, vice-presidente e analista sênior da agência à CNN.
A analista alertou: “Nós estamos sendo conservadores porque ainda não sabemos qual será a necessidade de despesas adicionais com o Rio Grande do Sul. A dúvida [sobre a situação fiscal] é sobre como o Brasil vai conseguir reverter a deterioração das contas públicas”.
Dívida do RS é suspensa, mas não perdoada
Dentro do pacote de ajuda ao RS, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) confirmou, nesta segunda-feira (13), a suspensão temporária do pagamento da dívida do estado com a União por um período de três anos. A contrapartida é que o dinheiro que seria pago seja utilizado em ações de recuperação no estado.
Com a extinção dos juros sobre o estoque do saldo devedor, o alívio aos cofres gaúchos é estimado em R$ 11 bilhões. O dinheiro deve compor um fundo público específico para as obras de melhoria da infraestrutura, pagamento de trabalhadores, remoção de famílias e estruturas produtivas em áreas de risco e contratação de serviços para o enfrentamento à crise.
O governador Eduardo Leite (PSDB), que participou do anúncio via internet, agradeceu, mas insistiu no perdão da dívida, hoje em cerca de R$ 95 bilhões. “Para reconstruir o estado precisamos de recursos do próprio estado. E hoje, os recursos do estado estão absorvidos por dívidas contraídas durante décadas no passado, entre as quais a dívida com a União”, afirmou à GloboNews. “Precisamos muito que haja uma folga no pagamento com a União pelo menos até o final deste mandato, pois temos que planejar as obras.”
O Rio Grande do Sul é o terceiro estado mais endividado da União, atrás somente de Rio de Janeiro e Minas Gerais. Considerando a relação entre a Dívida Consolidada Líquida (DCL) e a Receita Corrente Líquida (RCL), de 185% em 2023, o endividamento gaúcho é o segundo maior. O Rio de Janeiro ainda lidera, com DCL equivalente a 188% da RCL em 2023.
Na lista dos mais endividados estão também Goiás, Amapá e Rio Grande do Norte. Todos pleiteiam há anos a renegociação dos débitos. Na Fazenda, o receio é que os demais devedores também tentem recorrer às condições abertas para o RS.
Também na segunda, o ministro da pasta, Fernando Haddad, admitiu que chegaria a hora de discutir o assunto com os demais entes da federação. “Neste momento é a calamidade que nós estamos atendendo. Vai chegar o momento em que nós vamos retomar um debate que já havia sido iniciado, mas foi interrompido em virtude dessa situação”, disse o ministro.
Para Gabriel Barros, da Ryo Asset, os termos anunciados para o Rio Grande do Sul fazem sentido, não apenas pela situação de calamidade, mas pelo recente histórico de responsabilidade fiscal do estado.
“O Rio Grande do Sul fez uma série de reforma nos últimos anos. A suspensão do pagamento de juros e da dívida, naturalmente, é compreensível. A medida não seria tão bem percebida para estados como o Rio de Janeiro ou Minas Gerais, que têm uma situação muito diferente em termos de enfrentamento da insuficiência da atividade fiscal. O Sul, de fato, entregou muita coisa. Os outros não entregaram nada”, ressalta.
O governo, segundo ele, deveria aproveitar este momento de crise para tentar resolver a questão de forma abrangente. “Há vários estados com dívidas ou despesas correntes muito altas. Para além de medidas de curto prazo, deveriam ser endereçadas questões de ajuste estrutural, como o limite para o crescimento das despesas dos estados e o estabelecimento de subteto de gastos para as rubricas dos orçamentos estaduais. Mas este debate é muito incipiente”, diz.
Governo já destinou R$ 60 bilhões ao Rio Grande do Sul
Desde o início da calamidade, o governo Lula já direcionou perto R$ 60 bilhões ao Rio Grande do Sul para ações emergenciais. A última parcela do montante foi anunciada no sábado (11), com uma MP que destinou R$ 12 bilhões para execução de ações de órgãos federais nos municípios atingidos pelas fortes chuvas. Mas outras MPs virão conforme a necessidade, informou o Executivo.
Por enquanto, os recursos se destinam a medidas de apoio, como linhas de crédito, programas de segurança alimentar, assistência farmacêutica, e reforços à Defesa Civil e forças de segurança. A etapa mais pesada de reconstrução da infraestrutura será avaliada após o fim do estado de emergência.
Também já foram anunciadas a antecipação do cronograma de pagamento do abono salarial, do pagamento do Bolsa Família e do auxílio-gás, a liberação de 2 parcelas adicionais do seguro-desemprego e prioridade na restituição do Imposto de Renda para cerca de 1,6 milhão de gaúchos até junho, além de aportes para concessão de crédito para empresas.
Ainda nesta semana, o governo deve anunciar forma de auxílio direto às famílias gaúchas atingidas pelas enchentes. A expectativa é de algo moldes do auxílio implementado pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a pandemia da Covid-19, em 2020. Na ocasião, foi estabelecido o valor de R$ 600 por mês a 60 milhões de pessoas em isolamento social, com um custo de R$ 354 bilhões aos cofres públicos.
Haddad disse que o governo trabalha com diferentes cenários e possibilidades. Informações de bastidores dão conta que serão depositados vouchers de R$ 2 mil a R$ 5 mil para 100 mil famílias. Os beneficiários do Bolsa Família também seriam incluídos e receberiam o mesmo valor dos demais. Haddad não deu mais detalhes. “Vamos levar estes cenários ao presidente e ele vai deliberar”, afirmou o ministro.