Miriam Batucada morreu em 1994, aos 47 anos. O corpo foi encontrado em sua casa cerca de três semanas depois da morte e o laudo apontou que ela sofreu um infarto agudo no miocárdio.
A artista não era uma dessas de voz arrebatadora, mas o conjunto de qualidades incomuns em uma única pessoa a levou ao reconhecimento do meio musical e do público. Essa reação, no entanto, se esfacelou ao longo do tempo, sobreposta por uma personalidade irascível e andrógina.
O recém-lançado livro A História Incompleta de Miriam Batucada (selo Popessuara; 372 páginas), de Ricardo Santhiago, esmiúça a vida da cantora, compositora, ritmista e comediante nascida na Mooca, em São Paulo, que se enquadraria perfeitamente na condição de queer, antes mesmo de o termo ser criado (ou pelo menos conhecido).
Santhiago, doutor em História Social pela USP e autor de livros como História (Oral) de Cantoras Negras (2009) e Alaíde Costa: Faria Tudo de Novo (2015), narra uma multiartista talentosa, que chamou muito a atenção no início da carreira e apareceu como nova sensação musical, mas cuja luz, com o tempo, foi se apagando pelo temperamento difícil e um meio artístico nada afeito a ouvi-la.
O autor do livro a define como “mulher, artista, lésbica, possivelmente bipolar ou ciclotímica, organicamente feminista”. Nascida em uma família de descendentes italianos e conservadora, teve nesse ambiente o primeiro desafio de superação, embora a irmã, com todos os conflitos deflagrados ao longo da vida, tenha sido a única a compreender seu comportamento nada convencional.
A vida artística começou com passagens na televisão e no rádio nos anos 1960, veículos nos quais ela tinha mais sucesso de público do que de crítica. Com grande capacidade cênica e irreverência, conquistava espectadores. Mas, já no começo de carreira, se confrontava com colegas de trabalho nos bastidores, devido ao quadro emocionalmente instável, imperceptível quando subia ao palco para cantar.
Miriam Batucada compôs valsas e canções diversas, mas foi com sambas divertidos, irônicos e sarcásticos – às vezes, autobiográficos – que se destacou. Desenvolveu trabalhos com Paulinho da Viola, Billy Blanco, Monsueto, Maria Alcina, entre outros.
Desde o começo, porém, viu colegas de profissão crescerem, lançarem discos e chegarem ao estrelato, enquanto ela penava para se relacionar, impor suas ideias e realizar registros fonográficos de peso.
O livro narra todos esses desafios enfrentados pela cantora, que entre vários discos compactos lançados só teve dois álbuns solo. O mais conhecido deles o Amanhã Ninguém Sabe (1974).
Um disco anticonvencional feito em conjunto com Raul Seixas, Sérgio Sampaio e Edy Star foi lançado quase sem repercussão em 1971. Com o nome de Sociedade da Grã-Ordem Kavernista Apresenta Sessão das Dez, trata-se hoje de uma obra cult.
Com vida desregrada, amores fracassados, carreira errática e muitas crises com colegas de profissão, relaxou na aparência e foi parar em apresentações em bares de música ao vivo em São Paulo, que já não eram mais como as boates dos anos 1950 a 70, nas quais ela chegou a trabalhar, inclusive no Rio de Janeiro.
O livro usa pseudônimos quando trata de alguns personagens que conviveram com Miriam Batucada, principalmente as mulheres com as quais ela teve casos amorosos. A cantora morreu um tanto esquecida e rejeitada.
O caso de Miriam Batucada não é único na música, mas o autor do livro tem o mérito de resgatar uma história bem peculiar, composta não só de problemas conhecidos do showbiz, mas de conflitos internos e profundos, o que nos leva a refletir sobre comportamentos e personalidades – as que agradam, mesmo sendo erráticas, e as intoleráveis.
Paralelamente ao livro A História Incompleta de Miriam Batucada, houve o lançamento do bom álbum de 18 faixas Infiel, Marginal e Artista – As Composições de Miriam Batucada, disponível nas plataformas de música. Além de resgatar a voz da própria Miriam, apresenta versões de suas composições nas vozes de Silvia Machete, Leila Maria, Cida Moreira, Edy Star, Graziela Medori, Paula Sanches, Vange Milliet, Maria Alcina, Vânia Bastos, Ayrton Montarroyos, Zeca Baleiro, Marcos Sacramento, Blubell, Áurea Martins, Juliana Amaral e Ceumar. A direção musical do trabalho é de Sérgio Arara.