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    Maria Rita Kehl reflete sobre os impactos da hiperconectividade – Sociedade – CartaCapital

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    A expressão do ano, escolhida pelo Dicionário de Oxford, da universidade britânica homônima, é brain rot. Em tradução literal, “cérebro podre”. Refere-se ao esgotamento mental causado pelo consumo excessivo de conteúdo superficial e pouco desafiador, associado principalmente ao uso irrestrito das redes sociais. Dezenas de estudos têm demonstrado como o uso excessivo das redes sociais afeta negativamente a saúde, podendo levar a doenças como ansiedade, insônia e depressão. Para conversar sobre os efeitos da hiperconectividade, a psicanalista e escritora Maria Rita Kehl recebeu a reportagem de CartaCapital em sua casa. Logo de cara, avisou: “Nem sequer uso as redes sociais, apenas observo”. Apontou, porém, caminhos que podem ser úteis para se libertar do aprisionamento causado por esses dispositivos.

    CartaCapital: No Brasil, a população passa, em média, três horas por dia nas redes sociais, o que coloca o País em quinto lugar no ranking mundial de utilização dessas plataformas. Por que os brasileiros recorrem tanto a esse mecanismo de socialização? Qual o impacto disso na vida social?
    Maria Rita Kehl: Eu costumo chamar esses ambientes de “redes antissociais”, pois é neles que mais se briga. O fato de o corpo não estar presente fisicamente faz com que os usuários se sintam menos responsáveis pelas suas palavras. Circula muita violência nessas plataformas, uma violência anônima, sem necessidade de responsabilização. Pode-se, inclusive, manter um perfil falso. O que deveria ser um mecanismo de facilitação do diálogo torna-se um espaço onde alguns indivíduos se sentem protegidos para fazer coisas que eles não fariam pessoalmente. Ou seja, nas redes sociais, o outro, aquele que está do outro lado da tela, quase não é um indivíduo. Com sorte, ele é apenas uma imagem, um rostinho, e você nem sabe quem é. Isso não ocorre na materialidade da vida ­real, porque somos responsáveis pelas nossas palavras, nossos atos e também pelo outro. Não podemos ofender a dignidade, machucar ou humilhar alguém sem sofrer consequências. Quando esse “outro” torna-se uma figurinha, uma carinha, é como se entrássemos em uma terra de ninguém.

    CC: Quais são as consequências desse “vale-tudo” na vida real?
    MRK: São devastadoras. Um boato pode ser compartilhado por milhares de usuários, o alvo da informação falsa nem sabe como a história começou. Está sendo acusado injustamente, e tudo se multiplica em uma velocidade incrível. O que mais me assusta é essa irresponsabilidade. Ao mesmo tempo, nessa terra de ninguém surge um truque baixo: defender a todo custo o que chamam de “liberdade de expressão”, como se não houvesse nenhum limite para o que é possível manifestar nas redes. Ora, calúnia e difamação são crimes. Não deixa de ser no ambiente digital. Não sei como resolver isso tecnologicamente, mas as redes precisam ser regulamentadas. E olhe que passei por uma ditadura, quando o que queríamos que viesse a público era censurado. Evidentemente, quem passou por isso só pode ser a favor da liberdade de expressão, mas não se pode usar esse direito para proteger qualquer vandalismo cometido através da linguagem.

    “É comum ver as pessoas rolando o feed até o final. O que elas esperam que saia dali? Isso cria uma expectativa que te aprisiona”

    CC: Também é um ambiente de intensa exposição a todo tipo de propaganda. Os influencers vendem um estilo de vida inatingível para a maioria, o que deve gerar muita expectativa e frustração, não?
    MRK: Isso tem a ver apenas secundariamente com a internet. Antes, era a televisão: anúncios de roupas maravilhosas, viagens incríveis para o exterior e uma série de outras coisas inatingíveis. Isso é o capitalismo, sempre jogando uma isca, mesmo que depois você não consiga engolir e fique com a minhoca engasgada na garganta. Essa compulsão de “compre”, “tenha”, “viaje”… até ser feliz. É horrível transformar a felicidade em objeto de consumo. Freud afirmava que a saúde pode resumir-se à capacidade de amar e trabalhar. Amar no sentido de ter vínculos, e trabalhar criando coisas, algo que dê satisfação. Claro que a vida é mais que isso, mas, se você tiver afetos, laços, amores, e trabalhar com algo que faça sentido para você – e só uma minoria tem essa possibilidade – todos são elementos não para uma felicidade absoluta, mas para você se dar valor, sentir que a vida vale a pena, apesar dos percalços. As redes sociais nos alimentam com imagens de tudo isso, mas não podem nos proporcionar de verdade. Talvez seja essa a frustração. Não porque você deseje aquelas coisas todas, mas porque é como se as redes tivessem o poder de te dar essas coisas. É comum ver gente rolando o feed até o final. O que elas esperam que saia dali? Isso cria uma expectativa que te aprisiona, dando a sensação de que, em algum momento, algo relevante vai aparecer.

    CC: Como escapar dessa armadilha?
    MRK: Estamos aqui numa sala cheia de livros, quase um ambiente “anti-redes sociais”. Você percebe como é uma interação diferente? Não sei se é melhor ou pior, mas é, sem dúvida, muito distinta. Numa dessas noites de maluquice, decidi ler e decorar um poema de Carlos ­Drummond de Andrade com mais de 40 versos, chamado Passagem da Noite. E por quê? Porque é preciso levar com a gente versos do Drummond para acessar em momentos difíceis ou de tédio. Devemos guardar letras de músicas na cabeça para nos ocuparmos quando for preciso. Temos uma riqueza simbólica gigantesca à nossa disposição. Não se trata de ser contra o que vem pelas redes sociais, a questão é que só isso não basta. Dificilmente vão te enviar um poema do Drummond pelo WhatsApp. Normalmente, chegam coisas muito óbvias ou exibições do tipo “olha, estou na praia” ou “curtindo o Carnaval”. Também fazíamos isso antes, quando voltávamos de uma viagem, e mostrávamos as fotos impressas. Agora, ao mesmo tempo em que se vive, se exibe.

    CC: Essa necessidade de viver e exibir imediatamente nos afetou de alguma forma?
    MRK: Claro. Hoje, o mais comum é alguém estar numa praia bonita, curtindo, mas o maior interesse é registrar aquilo para publicar, para que os outros saibam. Isso muda tanto a sensibilidade diante da natureza, afetando a transcendência. Quando você vai para a Bahia e vê um ­ritual do candomblé, é algo de arrepiar. Ainda assim, muitos preferem gravar a cena no celular e enviar para um monte de gente. É algo tão potente, tão único, que é preferível deixar aquilo agir em você, em vez de simplesmente fazer um registro em vídeo. É curioso, porque existe um paradoxo nas redes: ao mesmo tempo que elas nos permitem agir no anonimato, também existe esse outro lado, o de querer expor-se imediatamente, transmitir e ser visto. É como se o grande momento não fosse a viagem ou o acontecimento em si, mas quando quem presenciou vai mostrar aos outros. •

    Publicado na edição n° 1343 de CartaCapital, em 31 de dezembro de 2024.

    Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Redes tóxicas’

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