A Agência Brasileira de Inteligência (Abin) enfrenta duas crises sem precedentes. Uma crise visível: a do uso deste órgão de Estado para manter um projeto autoritário por meio de um golpe de Estado e suas violações legais. Uma crise invisível: a do projeto de Inteligência necessário ao desenvolvimento nacional, ao futuro do povo brasileiro e ao papel do Brasil no cenário mundial.
Na crise que se dá a conhecer ao público vimos a instrumentalização da Abin para perseguições políticas e para a manipulação de interesses de Bolsonaro na presidência. Tais fatos colocam a necessidade de discutir os instrumentos que legitimam o processo investigativo realizado pela Agência.
A forma como a Abin foi usada durante a direção do Delegado de Polícia Federal Alexandre Ramagem no governo anterior sofre a acusação de ter ultrapassado todos os limites legais, com a instauração de um sistema de vigilância e espionagem de adversários políticos do ex-presidente.
Tais acusações provocaram e provocam horror na parte da sociedade brasileira que defende a democracia. Tal sentimento pode levar à ideia de que a atividade de Inteligência precisa ser suprimida ou manietada, tornando-a quase anódina. Um desprezo justificável diante dos fatos, porém perigoso e dirigido por um sentimento de raiva que não pode ser o condutor dos destinos do país.
A atividade de inteligência poderia centrar-se nas análises de cenários e na descoberta de carências e possibilidades de nosso país
E aí se dá a urgência de enxergar a crise menos visível e repensar a atividade de inteligência no Brasil. Precisamos superar a forma de atuação policial que tem sido a marca das sucessivas intervenções conduzidas por policiais federais na Agência, como a gestão do também Delegado Federal Luiz Fernando Corrêa. Sejamos justos, a compreensão da atividade de Inteligência unicamente como vigilância não é recente. Decorre da dupla agenda política americana, a de “guerra às drogas” e de “guerra ao terror”.
Isso explica a direção-geral da Abin entregue seguidamente a delegados da Polícia Federal, sob o predomínio da visão policial e de segurança pública. Visão insuficiente e errônea para as atividades da agência.
No caso dos Estados Unidos, visões limitadas e limitadoras, reservando aos Departamentos de Estado ações geopolíticas amplas, com capacidade interventora estratégica no cenário internacional. No Brasil, tornamo-nos reféns de uma concepção subordinada de país e, consequentemente, de Inteligência.
E qual seria a alternativa? Antes é preciso pensar as necessidades. Há enormes carências: superar gargalos técnico-científicos; pensar o nosso papel geopolítico; perceber perigos financeiros, militares, logísticos e de saúde vindos do cenário internacional; encontrar oportunidades não desenvolvidas em nosso país; analisar cenários climáticos, ambientais e de segurança hídrica e energética. Há muitas possibilidades.
A atividade de inteligência poderia centrar-se nas análises de cenários e na descoberta de carências e possibilidades de nosso país. Talvez até mesmo prospectar e buscar conectar setores de pesquisa das universidades que estão isolados e propor a criação de grandes programas de superação dos gargalos estratégicos da nação.
Na Abin, já há um corpo técnico capaz de fazer isso. Basta ver os milhares de relatórios produzidos durante a pandemia de covid-19, mesmo contra a vontade da presidência à época e contra as ordens da própria Direção-Geral do órgão.
Repensemos a atividade de inteligência no Brasil tornando-a adequada aos nossos interesses e necessidades. Não é hora de desconfiar da Agência Brasileira de Inteligência. É hora de punir os desvios pessoais. Mais que isso, também é hora de reformular o seu papel, construindo conceitos novos para o Brasil, escapando à dependência da agenda imperial dos Estados Unidos e de suas políticas.
A crise menos visível, a de um conceito de inteligência extremamente limitado e que já não nos serve, traz a oportunidade de construir um novo modelo de inteligência. Urge discutir isso. Sejamos independentes!
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.