O ofício da Advocacia-Geral da União (AGU) ao Google questionando a cotação do dólar exibida pela big tech em seu buscador soma-se a mais um episódio protagonizado pelo órgão para pressionar as redes sociais contra o que considera desinformação, buscando blindar o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de repercussões negativas.
O órgão comandado por Jorge Messias reagiu depois que o Google mostrou nesta quarta-feira (25), em sua plataforma de buscas, a cotação da moeda norte-americana a R$ 6,38, mesmo com o mercado brasileiro de câmbio fechado para o feriado de Natal. O caso virou notícia e gerou especulações nas redes sociais sobre uma nova disparada do dólar nesta semana, já que a moeda estava sendo negociada a R$ 6,15 no dia anterior, segundo o Banco Central.
O órgão pediu ainda que o Google reforce “em suas políticas internas de relação com os usuários a importância da integridade da informação para proteger os investidores populares, que costumam acessar o buscador para tomar decisões de negócios” (leia a íntegra do documento aqui). A reportagem solicitou esclarecimentos sobre a atuação da AGU e aguarda seu posicionamento.
Diante da cobrança e da repercussão negativa, o Google decidiu suspender temporariamente o serviço que mostra a cotação do dólar em tempo real no buscador e no Google Finanças.
Em nota à Gazeta do Povo ainda na quarta, antes da suspensão da ferramenta, a big tech informou que os dados em tempo real sobre o câmbio “vêm de provedores globais terceirizados de dados financeiros”.
Nesse caso, eles são fornecidos pela empresa americana Morningstar que, em nota de esclarecimento enviada à imprensa na quinta-feira (26), reconheceu que “dados errôneos” de um dos seus fornecedores “causaram uma discrepância temporária entre os dados da Morningstar para o Brasil e as taxas de câmbio reais do mercado”. Segundo a companhia, o problema foi corrigido e estão sendo adotadas medidas para “evitar que situações semelhantes ocorram no futuro.”
Um problema semelhante com o serviço do Google já havia ocorrido antes. Em 6 de novembro, a plataforma chegou a divulgar um gráfico em que as cotações da moeda norte-americana se aproximavam de R$ 6,20, enquanto plataformas financeiras, como a TradingView e a Bloomberg, mostravam um valor máximo do dólar registrado de R$ 5,86 naquele dia. Naquele período, o dólar não havia ainda ultrapassado a casa dos R$ 6. O valor foi corrigido pelo Google dentro de algumas horas.
O aumento da moeda norte-americana tem colocado em estado de alerta o Palácio do Planalto, que busca medidas para conter a volatilidade do câmbio. A pressão vem, principalmente, da incerteza sobre a situação das contas públicas no Brasil. A cotação chegou a R$ 6,30 na semana passada, mas operações de venda de dólar realizadas pelo Banco Central e a aprovação do pacote de ajuste fiscal na Câmara na semana passada fizeram o valor recuar um pouco. Na manhã desta sexta-feira, o mercado de câmbio abriu com a moeda norte-americana sendo negociada a R$ 6,20.
AGU pediu investigação sobre fake news sobre indicado de Lula ao BC
Além dessa investida contra o Google, no último dia 18, o órgão acionou a Polícia Federal (PF) e a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) para investigar a disseminação de uma notícia envolvendo o próximo presidente do Banco Central, Gabriel Galípolo, indicado por Lula.
Uma das declarações falsas atribuídas a Galípolo dizia que a “moeda do Brics nos salvaguardaria da extrema influência que o dólar exerce no nosso mercado”. O perfil que divulgou as postagens no X saiu do ar, mas o conteúdo chegou a ser republicado.
Na avaliação da AGU, a informação falsa comprometeu as ações do governo para conter a alta do dólar e “gerou impactos negativos na cotação”. O governo Lula, por meio do ministro da Secretaria de Comunicação (Secom), Paulo Pimenta, seguiu a mesma narrativa, atribuindo a alta do dólar observada na semana passada à “indústria das fake news” e a um “ataque especulativo”. No dia seguinte, o próprio Galípolo disse discordar da tese. “Eu acho que a ideia de ataque especulativo enquanto algo coordenado não representa bem”.
Outras ações da AGU contra fake news
Além da disparada do dólar, a AGU tem atuado em outros casos recentes envolvendo conteúdos prejudiciais ao governo nas redes sociais. No último dia 20, o órgão notificou a plataforma TikTok para que removesse uma postagem que colocava em dúvida o destino da multa de 40% da rescisão de um trabalhador demitido sem justa causa.
O vídeo suspenso afirmava que, a partir de 18 de fevereiro de 2025, os valores da multa rescisória não seriam mais destinados à conta do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) do empregado, mas sim ao Governo Federal. A AGU alegou que inexiste qualquer projeto que altere a destinação do direito trabalhista em caso de demissão.
Já no dia 13, a Advocacia-Geral da União enviou uma notificação extrajudicial ao YouTube Brasil para retirar do ar conteúdos que disseminassem informações falsas sobre o estado de saúde de Lula. Naquela semana, o chefe do Executivo encontrava-se internado no hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, para a realização de uma cirurgia para drenar um sangramento craniano, consequência da queda que sofreu em outubro. Por meio da Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia (PNDD), o órgão demandou que 12 vídeos fossem retirados do ar.
Para a AGU, as “narrativas identificadas” desinformam sobre o estado de saúde de Lula e geram “confusão a respeito de assunto de relevância pública, com potencial de atingir a confiança nas instituições públicas e, em particular, afetar a própria estabilidade política e econômica do país”.
Órgãos contra desinformação miraram plataformas
A própria criação da PNDD, em janeiro de 2023, foi um dos marcos da mudança na atuação da AGU. Sob o argumento de atuar “para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”, a iniciativa foi vista pela oposição na época como um “Ministério da Verdade”. Do lado do governo, o argumento usado foi de que o órgão iria restabelecer a “harmonia entre os poderes”.
A criação de mecanismos estatais para a vigilância do que é discutido nas redes também mirou conteúdos relacionados às enchentes no Rio Grande do Sul, em maio deste ano. Com aval do Planalto, Messias montou uma “sala de guerra contra as fake news” que estariam sendo divulgadas sobre a tragédia.
Messias se reuniu com representantes das empresas Google, LinkedIn, YouTube, TikTok, Meta, Kwai, Kuaishou Technology e Spotify, o que foi visto como um movimento de pressão do governo. Durante a crise, a AGU notificou extrajudicialmente as redes sociais, exigindo a remoção de postagens com “desinformação” sobre a entrega de cestas básicas no Rio Grande do Sul, dando às plataformas 24 horas para cumprir a solicitação.
“As fake news têm atrapalhado, primeiramente, a ação do poder público, porque a população tem recebido informações inautênticas e inverídicas em relação a ações que estão em andamento agora mesmo no Rio Grande do Sul”, disse o advogado-geral da União.
AGU quer responsabilização e regulamentação das redes
Além das notificações, a AGU concentrou esforços na defesa da responsabilização e regulamentação das redes, mudando posicionamentos do próprio órgão em gestões anteriores.
Durante o julgamento do artigo 19 do Marco Civil da Internet, no Supremo Tribunal Federal (STF), em 28 de novembro, Messias argumentou pela inconstitucionalidade do trecho da lei, que prevê responsabilização de provedores de mídias sociais apenas se eles não apagarem conteúdos cuja remoção tenha sido determinada pela Justiça.
Participando do XXVII Congresso Internacional de Direito Constitucional, em outubro, Messias também defendeu a necessidade da responsabilização das plataformas por sua atuação e sustentou que o tema é também uma questão de soberania nacional.
“Sabemos que estamos diante de negócios que são extremamente lucrativos, e como negócios extremamente lucrativos, precisamos submetê-los aos interesses da sociedade”, afirmou o advogado-geral.
No governo Lula, a AGU também defendeu a suspensão da rede social X”, determinada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes. Segundo o órgão, a decisão não representou obstáculo à liberdade de expressão e era uma “medida necessária” para garantir o cumprimento das decisões judiciais do tribunal.
“É relevante repisar que a suspensão cautelar do funcionamento da rede X em território brasileiro, assim como a medida instrumental e acessória de fixação de multa para pessoas que insistirem na comunicação naquele aplicativo por meio de subterfúgios tecnológicos, não tem por escopo obstruir a liberdade de manifestação ou opinião de particulares que utilizam redes sociais, mas de aplicar à empresa medidas processuais indutivas e coercitivas que assegurem o cumprimento das ordens judiciais e a observância à legislação brasileira”, disse a AGU em sua manifestação sobre a suspensão do X durante o período eleitoral.
AGU é um órgão de Estado e não de governo, diz advogado
O advogado constitucionalista André Marsiglia, especialista em liberdade de expressão, destaca que a conduta atual da AGU “desatende à coletividade”. “A AGU é um órgão de Estado, não do PT. Essa conduta desatende à coletividade e fere o dever de impessoalidade exigido do órgão pelo artigo 37 da CF.”
Além disso, Marsiglia observa que a AGU tem se dedicado a temas que a transformam indevidamente em uma espécie de polícia de redes sociais, vigilante da liberdade de expressão alheia. “Desde o início do governo, dentro da AGU, se criou uma espécie de ‘ministério da verdade’, chamado de ‘Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia’, que, na prática, combate supostas fake news contra as políticas petistas”, criticou o advogado.