Ao sentar-me na poltrona do cinema, não estava preparada para o que me sucederia pelos próximos 150 minutos. O filme A Substância, da cineasta francesa Coralie Fargeat, segue a tradição disruptiva das diretoras do país, como Justine Triet e seu arrebatador Anatomia de uma Queda, vencedor do Oscar de melhor roteiro original e melhor direção em 2024. A abordagem de temáticas caras às experiências de vida das mulheres no mundo contemporâneo, assim como o flerte explícito com temáticas pertinentes ao movimento feminista, abrilhanta a trajetória dessas cineastas que estão estampando críticas profundas nas telas do cinema mainstream.
No longa A Substância, nos deparamos com uma temática de certa forma já abordada por Fargeat em seu curta-metragem de 2014, Reality +, onde seus personagens vivenciam sentimentos de inadequação com a própria aparência e personificam a busca por uma estética socialmente perfeita. Entretanto, na obra estrelada por Demi Moore, Coralie Fargeat mergulha em aspectos profundos de uma questão que circunda a existência feminina desde tempos imemoráveis: o envelhecimento e suas consequências sociais.
Escapando aos clichês acerca de termos esvaziados como “pressão estética” ou “culto à juventude”, Fargeat nos conduz ao que há de mais visceral na experiência do envelhecimento feminino, abrilhantando o processo através da entrega de Demi Moore ao papel de Elizabeth Sparkle, uma atriz hollywoodiana que se vê renegada e substituída por seu alter-ego jovial ao injetar uma substância misteriosa.
Demi Moore, encarnando Elizabeth Sparkle, vomita sobre nós todo o impropério social e dores que são talhadas sobre os corpos femininos por conta da misoginia, que, ao contrário do que muitos pensam, não se torna mais branda se intitulada “pressão estética”.
No processo de tornar-se o seu alter-ego jovial intitulado Sue e interpretada por Margaret Qualley, Elizabeth revisita violências vivenciadas nos bastidores dos programas de televisão, nos olhares de indivíduos que outrora a admiravam e na perspectiva aterradora de estar desaparecendo, se transformando em uma versão invisível de si mesma. Decerto, a experiência de assistir ao longa sendo uma mulher em seus vinte anos jamais poderá se comparar a vê-lo aos cinquenta ou sessenta, quando se está vivenciando de forma literal a representação alegórica e grotesca de Coralie.
Ao acompanhar as críticas, se fez notória a convenção popular de que a obra versa sobre uma suposta obsessão feminina por permanecer amada. Entretanto, a perspectiva me parece no mínimo equivocada e culpabilizadora. Pois a abordagem central se encontra na invisibilização feminina à medida que ocorre o processo de envelhecimento. A problemática não reside em desejarmos ser amadas, mas sim no fato de que, como mulheres em uma sociedade que nos coisifica, não ser amada e sexualmente desejada significa a aniquilação.
Homens, em seu processo de envelhecimento, conseguem sentir-se subjetivamente humanos por meio de outros artifícios, tais como a sua agência sobre si, sobre outros e possibilidades que lhes são socialmente concedidas desde o nascimento por conta da condição masculina. Mas, o que resta às mulheres, se somos esquecidas, apagadas e renegadas ao envelhecermos?
Mulheres, quando supostamente se tornam desesperadas por amor, estão, na verdade, desesperadas para serem reconhecidas como humanas, para sustentarem a sua subjetividade no mundo através de outros artifícios e vivenciar uma humanização que não se esvai por entre os dedos à medida que envelhecemos. Não somos obcecadas por amor, estamos em busca de um significado.
Ao nascermos, imprimem sobre nós uma data de validade vinculada à utilidade feminina aos sistemas patriarcal e capitalista, salientando as capacidades sexuais e reprodutivas das mulheres. Crescemos sob a insígnia do mito da ninfeta, romantizada em meio a cultura da pedofilia, que comunga com dados estarrecedores acerca do assédio e violência sexual no Brasil. Segundo dados coletados através da hashtag #PrimeiroAssédio, lançada por Juliana de Faria, fundadora do coletivo feminista Think Olga e criadora da campanha “Chega de Fiu Fiu“, a idade média para o primeiro assédio no Brasil está entre 9 e 10 anos de idade.
No centro de uma sociedade que supervaloriza a adolescência e juventude femininas sob perspectivas predatórias, somos conduzidas a crer que a obsessão pela jovialidade se dá somente através da representação cultural ou das campanhas para produtos de beleza, quando, na verdade, tal obsessão serve ao objetivo prático de coisificar, explorar e controlar a sexualidade e existência femininas. Visando, por fim, segregar mulheres, nos mantendo eternamente dopadas, assombradas por imagens inatingíveis, nos impedindo de despertar para demandas subjetivas e políticas.
A repulsa ao envelhecimento feminino nos causa danos para além de questões subjetivas ou relacionadas aos mercados da moda e estética. Pois, associada à subvalorização das mulheres, tal repulsa culmina em menos pesquisas na área das mudanças fisiológicas e neurológicas decorrentes da menopausa e na ausência de políticas públicas abrangentes voltadas ao envelhecimento feminino, ainda que mulheres sejam mais da metade da população brasileira.
Convenciona-se que a existência feminina deve ser permitida na medida em que serve às necessidades patriarcais, quando mulheres seguem utilizando o seu tempo a serviço de homens, relegando nossas vidas e jurando lealdade aos ideais masculinos. A partir do momento em que construímos repertório, nos aprofundamos em nós mesmas e deixamos de ser úteis às necessidades masculinas, nos personificam como criaturas aberrantes. Crítica essa direcionada igualmente ao cinema de horror, onde corpos de mulheres idosas tendem a ser utilizados como elementos cujo objetivo é despertar repulsa.
No filme A Substância, a transformação final de Elizabeth numa versão dantesca e deformada de si mesma rompe com o estereótipo, culminando na catarse de uma mulher que se apresenta ao público como o resultado daquilo que dela fizeram ao longo de toda uma vida, substituindo suas partes humanas por partes plastificadas, sexualizadas e úteis, que nesse processo de dissecação, dão lugar a essa amálgama de sangue, fluídos e protuberâncias com o rosto de Elizabeth.
O sangue que jorra em formato horror slasher sobre a plateia não se configura como uma tentativa fajuta de nos conduzir à repulsa do feminino, mas sim de experimentarmos imageticamente a sensação de ver-se desassistida em sua subjetividade, desesperada enquanto se tenta unir pedaços de si na versão mais palatável, para por fim deparar-se com o desejo em seu estado mais autêntico.
A entrada da versão dantesca de Elizabeth, usando um belo vestido e uma caricatura de seu rosto com um batom vermelho, diz imenso sobre aquilo em que nos transformam e no que nos transformamos ao fechar das cortinas.
Se não permitem que mulheres sejam a si mesmas, crescendo e envelhecendo, então que sustentem a nossa revolta, a nossa catarse, o nosso ato final.
A Substância é uma ode ao direito feminino inalienável de existir. Seja aos vinte ou aos cinquenta, nós, mulheres, ainda estaremos por aqui.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.